terça-feira, 6 de maio de 2008

O marxismo, entre filosofia e política

Alysson Leandro Mascaro *

Fecharam as portas do presente ao marxismo: eis a grandeza marxista no tempo presente. Grande parte do relevo do marxismo na sociedade contemporânea reside na própria situação do capitalismo. A sua estrutura econômica de exploração apresenta fissuras incontornáveis. O presente injusto, ao fechar as portas ao marxismo, só lhe demonstra o peso, a força e o temor que impõe. A realidade reclama o marxismo e o seu pensamento, sua filosofia, seus debates, sua forma de ver o mundo e, pois, os próprios marxistas impõem-se perante o mundo. O marxismo há de se sustentar em primeiro porque a realidade lhe reclama o entendimento e a ação, e em segundo lugar porque há socialistas.

Ernst Bloch, um dos mais importantes pensadores do marxismo do século XX, lançou luzes a um setor pouco estudado do marxismo, mas que, no século XXI, há de se revelar fundamental para projetar o seu futuro: a utopia concreta do socialismo é o descortinar de horizontes que dá sentido à ação revolucionária e crítica do presente.

De fato, tomando-se o final da década de 1980 como símbolo da derrocada do socialismo real, já se vão quase vinte anos nos quais o marxismo é dado como falido ou morto. Os bons marxistas foram chamados a fazer seu inventário. A crise do marxismo tem sido a palavra de ordem - para enterrá-lo ou para cultuá-lo apenas como relíquia - até a atualidade.

No entanto, é outra a orientação do marxismo. É chegado o tempo de reafirmar sua grandeza enquanto orientação revolucionária de um futuro melhor. Além de ser uma teoria que a maioria do pensamento das sociedades do tempo presente não aceita, o marxismo é a crítica a esse mesmo pensamento. Portanto, em sendo a crítica do presente, não se comove com algum bem-querer geral ao seu respeito. Antes, encontra na crítica advinda de uma sociedade injusta mais fôlego para suas investidas. Se balizado em uma constante autocrítica que lhe dê parâmetros de uma razoabilidade na própria ação revolucionária, o marxismo somente há de encontrar força nessa situação na qual todas as instâncias do poder - a universidade, os jornais, os meios de comunicação, os partidos políticos, os sindicatos - se lhe fecham os portões.

É que, durante um certo tempo, o marxismo esteve às portas da ordem social bem estabelecida. Na soleira, mantinha um olhar na rua e outro já dentro das instituições. Alguns marxistas ganharam eleições pelo voto democrático, seus pensadores ganharam cátedras, seus economistas contribuíram com pacotes econômicos, seus líderes sindicais tiveram máquinas burocráticas nas mãos, de tal sorte que, do seu primeiro habitat, a periferia, a favela, a fábrica, as ruas, o marxismo pensou estar prestes de ganhar os edifícios das elites, e, então, a revolução não seria mais um conflito a ser empreendido, e sim um convite a um baile. O marxismo continua na mesma, apenas o convite foi rasgado. Não estar na soleira da porta das elites não é mau sinal; pelo contrário, é a grande felicidade do reencontro consigo próprio e com os seus.

Cristo um dia foi morto pelos poderosos de Jerusalém e de Roma. O cristianismo está em melhor cuidado com os cristãos miseráveis e caridosos das periferias, que desconhecem teologia e hierarquias, do que com os potentados religiosos nos palácios e templos revestidos de ouro. O pleno cristianismo é uma ação de amor num mundo de desamor. Se os cristãos forem amados pelo amor que apregoam, de duas uma: ou o mundo já é de amor ou, em caso de um mundo de desamor, guerra e ódio, esse cristianismo é falso. O mesmo com o marxismo. Sua aceitação pelo capitalismo é o seu fim. O ódio do capitalismo ao marxismo é tão-somente sua beleza, porque é a teoria e a ação críticas ao capitalismo, e, portanto, a porta de abertura para um futuro que é outro que não a confirmação do presente.

Falar da crise do marxismo porque o presente se lhe é fechado é argumentar na órbita da sociedade que se quer transformar. O marxismo, conforme Bloch já incitava, deve falar da esperança, do futuro, e de novo orientar-se pela transformação do mundo. O presente é o capitalismo, a injustiça. A luta transformadora é pelo socialismo, pelo justo, pelo belo. Para esse fim devem ser orientadas as energias marxistas e socialistas.


O pensamento e a ação - O marxismo é uma especial filosofia. Se um estudante universitário ou um professor se dedicam a estudar o pensamento de David Hume ou de Kant, por exemplo, não se lhes exige uma tomada imediata de posicionamento em face de questões presentes que, no passado, porventura esses pensadores tenham também tratado. Não há, nos dias de hoje, grupos kantianos disputando a primazia do kantismo. Com o marxismo ocorre algo de distinto.

No entendimento econômico, na compreensão social e no próprio discurso filosófico, o marxismo é uma ruptura total com a bem-estabelecida divisão universitária do conhecimento. O marxismo é o estudo do pensamento de Marx, mas, também, uma tomada de posição em relação ao seu objeto de estudo, o capital. Como o capitalismo invade todos os sujeitos e todas as coisas, o marxismo é um pensamento total, porque se assenta sobre a totalidade dos objetos sociais. O marxismo é um duplo total do conhecimento conservador assentado e estabelecido, porque sua capacidade crítica se estende nesse todo. Mas, além de duplo desse todo, ele é mais. Ele é, ao mesmo tempo, o desdobrar de uma teoria e, também, um entendimento crítico que se levanta de cada esfera concreta das relações do todo social. O todo no marxismo é maior que o todo no pensamento vulgar ou conservador.

O encontro da teoria e da prática num nível superior é o que diferencia o marxismo do conhecimento assentado no senso comum e na universidade: no senso comum, as coisas são aquilo que são, conforme a sua apreensão imediata ou pragmática. No senso universitário, as coisas são o que resulta de um sistema de pensamento, daí o seu caráter teórico. O marxismo supera ao mesmo tempo o senso comum e o mundo teórico acadêmico, na medida em que se revela a entranha do ser social.

Ocorre que o marxismo, por estar espraiado por tantas áreas, voltado a tantos objetos e com tamanhas possibilidades de estratégia política, não tem sido o marxismo, mas os marxismos. Há os marxismos por conta dos objetos - o marxismo e a economia, o marxismo e a política, o marxismo e a filosofia, o marxismo e o direito, o marxismo e a estética etc. Mas, além disso, há os marxismos como variadas leituras da realidade que implicam em variadas ações políticas. Não é nem tanto na miríade de objetos que se distinguem os marxismos, porque a leitura marxista de um jurista há de guardar especificidades com a leitura marxista de um economista ou de um educador. A dificuldade maior do marxismo reside no enfrentamento da realidade. É na ação política que se tem revelado a desconexão entre teoria e prática.

Durante muito tempo, afirmou-se que, no Brasil, o erro estratégico do velho Partido Comunista se devia a uma deficiência teórica na leitura da realidade brasileira. E tal era mesmo o fato. Caio Prado Junior, pioneiro de uma leitura melhor qualificada da realidade brasileira pelo marxismo, mostrou os horizontes limitados de uma política comunista que se fiava, até então, apenas numa aliança política progressista com a burguesia.

Somente a partir de uma determinada época mais recente da história do Brasil é que se viu um marxismo bem estruturado teoricamente, separando-se de uma espécie de voluntarismo que foi típico do primeiro período. No entanto, em todo esse período no qual o marxismo entre nós enfim floresceu como filosofia, seu afastamento da realidade foi ainda maior.

A velha geração marxista brasileira, dos partidos comunistas, era essencialmente política. Caio Prado Junior e Florestan Fernandes, por exemplo, na transição, foram teóricos e políticos. A nova geração, que melhor leu o marxismo, é essencialmente teórica. Quando chamada à realidade, tem na palavra a crítica ao presente, mas nas mãos uma frouxidão na ação. Seu convívio geracional se deu com a ditadura e a democratização. Embarcando num projeto democrático conduzido por terceiros, desde então o pensamento marxista brasileiro tem sido maior na teoria do que naquilo que a realidade lhe reclama. Um pós-graduando marxista, após uma tarde em uma biblioteca, aprofundado no estudo estrutural de um autor, ao fechar seus livros, depara-se com o jornal do dia e sente languidez em face dos assuntos e abordagens da realidade. Ele não faz correspondência entre a profundidade de seu estudo e o seu posicionamento na sociedade brasileira. As demandas sociais lhe são banais, e seus préstimos marxistas, então, continuam sendo apenas universitários, já que na realidade ele está conformado à divisão do trabalho capitalista e à máquina burocrática pertinente, que é formalmente democrática e que lhe permite um pensar teórico crítico e um agir político conformado.

O desgarramento da realidade em favor da teoria faz de alguns marxismos leituras coerentes sem realidade subjacente. É neste sentido que um Luis Carlos Prestes, com uma leitura equivocada do marxismo e da realidade, carregava mais ação marxista que um excelente leitor estrutural dos livros de Marx. O enfrentamento da realidade, que perfaz a verdade do marxismo enquanto transformação do mundo, conforme a própria Tese XI sobre Feuerbach, é hoje um caminho esquecido. A resposta da teoria: a realidade hoje é diversa daquela do mundo do trabalho operário do século XX. Mas, ainda assim, energias teóricas e práticas foram muito maiores num marxista do começo do século XX, bem mais reprimido e perseguido naquela ordem estabelecida, que num marxista de começo do século XXI, num ambiente de democracia formal e liberdade de cátedra.

Se o aprofundamento teórico do marxismo veio desacompanhado de uma ação política correspondente, no campo prático a ação, ainda que continue não-teórica, também se mediocrizou por rebaixamento de horizontes. O voluntarismo marxista, que é uma má leitura de Marx, deu espaço a um conformismo político, o que é uma leitura de Marx ainda pior. No campo político, restam poucos revolucionários, e esses poucos têm muita dificuldade de romper com o sectarismo e exercer um papel de catalisação social. Se os intelectuais, aprofundando a teoria marxista, deram um passo à frente com uma perna e, miraculosamente, com a outra saltaram para trás ao abandonarem a ação política, os sindicatos e os partidos políticos, sem teoria e adstritos à tática, já se encontram no jogo do sistema capitalista, apreciadores dos ganhos reformistas e agora já também no jogo político, em cargos estatais. Nos intelectuais, cansaço; nos políticos de partido e sindicato, aproveitamento da realidade tal e qual.


As energias do marxismo - As energias do marxismo saem da realidade. O trabalho continua explorado. Milhões de pessoas continuam ainda vendendo sua vida para, ao final de cada jornada e por toda uma existência, outros lhes determinem o que fazer com seus corpos, gestos, inteligência e ações. O paraíso do consumo é das elites; se já alcança os pobres, é no limite da ilusão. A indignidade da maioria da população mundial, se o mundo anda anestesiado, não se torna dignidade. Torna-se apenas indignidade não sentida nem percebida. Mas a indignidade gera seus efeitos profundos, e a dignidade da luta impõe um sentido transformador do indigno.

É da realidade que resulta a tomada de posição do marxismo. O político rendeu-se às benesses do Estado, mas num nível mais alto - o ocupante de cargo político, o líder sindical. O líder de movimento social, a comunidade de um bairro periférico, o sem-terra e o sindicalizado que não é líder, todos esses ainda são os revolucionários de amanhã. Muitos intelectuais se venderam ao capital em troca só dos salários na universidade. A teoria tem sido seduzida pelos ambientes confortáveis do mundo acadêmico, que não é marxista. Por isso, o máximo de marxismo permitido pelo mundo capitalista hoje é Habermas. Mas o revolucionário é aquele que junta o conhecimento do teórico e a ação do político sem se comover com o cargo universitário ou estatal ocupado ou não. Se a realidade é sua fonte de energia, ela é também o destinatário final de sua ocupação.

A sociedade capitalista mundial é hoje a tragédia embalada em rótulos de consumo. Ela insiste que a tragédia do hoje é o limite do possível. O marxismo é maior: é a possibilidade da beleza e da dignidade do amanhã justo.


* Alysson Leandro Mascaro - Doutor e Livre-Docente em Filosofia do Direito pela USP. Professor da Pós-Graduação do Mackenzie. Autor, dentre outros, de Lições de Sociologia do Direito (Ed. Quartier Latin) e de Introdução à Filosofia do Direito: dos modernos aos contemporâneos (Ed. Atlas).


FONTE: Portal UNESP

Um comentário:

fernando lima disse...

Brilhante suas idéias, professor. Realmente, a distância entre a teoria e a prática marxistas, nos dias atuais, é patente. Pergunto-lhe: é possível praticar o marxismo, estando no sistema (como professor, juiz, promotor, advogado)? A crítica ao capitalismo pode ser feita, mesmo quando por ele somos remunerados, ou exige-nos um total isolamento?
Dias atrás, li em Bobbio que certos valores engendrados pela burguesia não podem ser abandonados pela esquerda - como a defesa constitucional dos direitos individuais. O senhor concorda?
Abraço fraternal.
Fernando.